Seis cartas de amor – edição #2
Sobre encontrar alma gêmea na amizade que acolhe, ensina e, às vezes, parte o coração, sobreviver à traição e renascer no perdão.
Oi, amor(a).
Espero que teu coração esteja tranquilo hoje, se não estiver, tudo bem também — essa newsletter existe pra te lembrar que sentir profundamente é uma potência, mesmo quando dói.
Hoje a gente vai falar de um tipo de amor que nem sempre é tratado com o carinho que merece: o amor entre amigos. Philia (φιλία), na Grécia Antiga, era o nome dado a esse afeto firme, cúmplice, que nasce da convivência e cresce na confiança. Ao contrário da paixão urgente de Eros, Philia é feita de permanência, de olhos que se reconhecem mesmo depois de meses sem se ver. De conversas que curam. De silêncio que acolhe.
Mais do que uma simples amizade, Philia é esse vínculo quase sagrado entre pessoas que se escolhem de novo e de novo — mesmo quando o mundo parece afastar. Ela está nas risadas abafadas no meio da aula, nos desabafos de madrugada, nos abraços que salvam sem dizer nada. Está nos livros trocados, nas mensagens sem motivo, nos conselhos sinceros. Philia transforma a vida porque é o amor que caminha junto.
E, como toda forma de amor, ela também carrega camadas de dor, rupturas e saudade. Às vezes, essa cumplicidade se quebra — e o que fica é o luto por uma amizade que foi casa e deixou de ser. Hoje, quero te contar algumas dessas histórias. De como esse amor já me moldou, me feriu e me salvou. Bora?
Minha “quase” irmã de alma — minha amizade com May
Quando conheci a May pela primeira vez, online, não havia suspeita de que nossa história atravessaria cinco anos de reencontros e distanciamentos. A cada briga que encerrava nosso ciclo, eu teimava em enxergar o melhor dela: seu sorriso fácil, o bom humor que iluminava minhas tardes, o apoio incondicional quando eu mergulhava no meu processo de descoberta enquanto pessoa não-binária. May era ao mesmo tempo tudo aquilo que eu queria ser — segura, carismática — e tudo aquilo que eu temia: manipuladora, pronta para surtar quando não tinha controle. (Se bem que isso refletiu muito em mim, mesmo eu não querendo.)
Mesmo assim, nossa amizade se aprofundou como poucas. Dividimos segredos, angústias, alegrias. Ela me ajudou a entender minhas próprias transições e a explorar novas dinâmicas no poliamor. Eu entreguei meu afeto sem reservas — cuidava dela como se fosse irmã, como se fosse namorada platônica — e esperava o mesmo cuidado de volta. Quando May traiu minha confiança de maneira brutal — se relacionando com meu ex-namorado enquanto ele estava comigo —, meu mundo caiu. Ainda assim, aprendi a perdoar: uma, duas, três vezes… até a nossa primeira e única reunião presencial, em 2024, quando reencontrei aquele perfume tão familiar após anos só pela tela.
O encontro foi mágico. Por um instante, senti que tudo daria certo de novo. Mas bastou um lampejo das críticas que ouvi de outras pessoas para eu encarar a verdade: a amiga de alma realmente tinha suas facetas obscuras. Quando enxerguei o que tantos tentaram me alertar, a dor de perceber o desequilíbrio do vínculo me fez amadurecer. Hoje, sei que perdoar não significa esquecer: significa reconhecer o aprendizado e seguir em frente.
Perder essa amizade deixou uma ferida profunda. O luto de Philia pode doer mais que o fim de um relacionamento romântico, porque envolve quem acreditávamos que nos salvaria. Eu ainda revisito o perfil dela de vez em quando — não por curiosidade ou mágoa, mas para reafirmar que foi a escolha certa encerrar aquele ciclo.
A leveza das conexões sinceras — Mariana & Giovana
Nem todas as amizades da minha vida foram como a da May — intensas até se romperem. Algumas floresceram de um jeito mais doce, apenas chegou e permaneceu, mesmo quando o tempo passa.
A Giovana, por exemplo, foi uma dessas. A gente se conheceu de um jeito meio inusitado: eu a vi chorando, não lembro se era na biblioteca ou no pátio do colégio católico em que estudei, mas lembro que eu simplesmente fui até ela, abracei, acolhi. A gente tinha uns dois ou três anos de diferença, então eu ainda estava no Fundamental, e ela provavelmente já quase no Ensino Médio. Não lembro exatamente como aconteceu, mas a partir desse momento, nasceu entre nós uma troca verdadeira.
Não éramos grudadas no dia a dia, mas quando a gente se encontrava… nossa, era como se o tempo parasse. Conversávamos horrores, ríamos alto, compartilhávamos nossos mundos, tínhamos até um cumprimento só nosso! Ela me dava conselhos muito bons pra alguém mais nova como eu, e eu a via como uma irmã mais velha, quase como se fosse minha tutora. Gi também me apresentou à literatura. Eu ainda tenho dois livros que ela me deu — ou que talvez eu tenha esquecido de devolver, desculpa, Gi —, e um deles é Moxie, que fala sobre feminismo. Um livro que é completamente ela.
A Gi era, e ainda é, uma amizade calorosa. Hoje ela tá vivendo a vida dela, com casa, marido, trabalho… e mesmo sem falarmos com frequência, a gente ainda se segue, se compartilha nas redes, eu sempre recebo um sinal de vida dela. E isso basta. Tem amizades que a gente não precisa ver ou falar todo dia, mas a energia fica guardada num canto bonito do peito. E a Gi é isso, um raio de sol!
A Mari também foi uma dessas amizades que marcaram. Ela era do mesmo colégio. Hoje em dia, é muito fiel a Deus, e eu admiro demais a fé dela. Aliás, admiro a fé dela em todas as fases. A Mari passou por muitas transições religiosas e, mesmo com tudo isso, nunca perdeu a doçura.
Ela é inocente no melhor sentido da palavra — acredita nas pessoas, no bem, nas mudanças. Quando eu perdia a fé nessas coisas, era só lembrar dela pra me reencontrar. Ela era uma das poucas amigas que eu tinha coragem de levar na casa do meu ex-padrasto, mesmo sendo um lugar que me envergonhava. As paredes não tinham reboco, era tudo muito simples, sabe? E ela simplesmente… não ligava. Ela me via além daquilo.
A verdade é que eu sempre vivi meus laços com intensidade. Cada amizade me molda, me transforma, me ensina. Tem a May, que me ensinou pelo sofrimento, pela quebra, pela dor. Tem a Gi, que me ensinou pelo riso, pelo acolhimento leve, pela troca espontânea. E tem a Mari, que me ensinou com a fé, com a pureza, com aquele jeitinho doce de quem ainda acredita no melhor das pessoas.
Carrego todas elas dentro de mim. Guardo com carinho no peito. São partes da minha história — algumas ferem, outras curam. Mas todas deixam marcas que me ajudam a entender o que é Philia.
As formas que o amor se veste entre amigos
Philia é esse amor que não pede constância, mas presença. Não exige perfeição, mas verdade. É encontrar alma gêmea na amizade e sobreviver ao luto quando o vínculo se parte. É ver beleza nos encontros breves e também nas relações que sobrevivem aos anos, às brigas, às mudanças de rota.
Às vezes, Philia é um abraço no pátio do colégio. Às vezes, é um reencontro mágico que dói no fim. Às vezes, é alguém que entra na sua casa, senta no chão descascado e te vê com o coração inteiro.
Que a gente aprenda a reconhecer esse tipo de amor — o que ensina, o que cuida, o que acolhe, o que parte e ainda assim fica.
E você, leitora/leitor: Qual foi a maior lição que uma amizade te deixou, mesmo que ela tenha terminado em dor? Você consegue perdoar sem esquecer? Como você demonstra seu amor de amizade? em palavras, gestos ou arte?
Na próxima edição, seguimos com Storge, o amor enraizado nas relações de cuidado e família. E se preparem esse vai ser pesado!
Por amor(a), sempre.