Seis cartas de amor – edição #3
Sobre o amor que cresce em lares, gerações e na escolha de quem chamamos família, raízes que sustentam o coração.
Oi, amor(a)!
Hoje vamos falar de Storge (στοργή), o amor familiar que brota naturalmente — aquele afeto sereno, enraizado no cuidado cotidiano e na pertença que perdura. Na Grécia Antiga, Storge era o amor entre pais e filhos, irmãos e parentes próximos: não nasce de um fogo súbito, mas de gestos constantes, de carinhos simples e da proteção silenciosa que percebemos desde cedo.
É o amor que envolve berços e travesseiros compartilhados, que se manifesta num toque suave nas costas antes de dormir, num prato quente esperando na mesa, num “vai com cuidado” sussurrado no portão de casa. Hoje, quero trazer aqui minhas memórias de Storge — as que me formaram, as que me feriram e as que me ensinaram quem eu sou.
Família grande, afetos quebrados e o luto
Eu venho de uma família grande. Minha avó teve 13 filhos, cada um com de um a cinco filhos. Eu, filha única da minha mãe, fui criada por ela e pela minha avó — sempre presentes, sempre amorosas. Não houve pai presente em casa: meu pai se separou quando eu tinha uns cinco anos. Ele foi um homem infiel, e eu passei boa parte do tempo esperando por ele. Só no início de 2024 recebi a notícia de que ele estava doente, uma semana depois ele faleceu de câncer. Fui informada pelos meus irmãos por parte de pai — pessoas maravilhosas com quem, na infância, eu quase não tinha contato, mas hoje em dia me sinto parte desse lado da família novamente. A primeira vez que chorei por ele foi um ano após sua morte, quando lembrei de uma brincadeira nossa, que era assim: eu me escondia e pedia pra minha mãe perguntar ‘cadê a Amora?’. Ele me procurava pela casa toda — eu vi um vídeo no TikTok que fazia isso e chorei como criança.
Foi a primeira vez que eu senti saudade. Saudade real! E também a primeira vez que entendi que não odiava meu pai. Só odiava o que ele fez. Mas ele me amou à sua maneira. E mesmo ausente, deixou um carinho que ficou comigo, escondido, esperando ser lembrado.
Quando Maria Eleonor — minha avó — faleceu, em 17 de setembro de 2021, eu senti que perdi uma parte de mim. Ela era calma, doce, nunca me desrespeitou — mesmo sabendo da minha sexualidade, sempre me acolheu. Ainda carrego comigo o princípio que ela me ensinou: “mesmo que tu não goste, apoie calado.” Isso, infelizmente, não se espalhou pelo resto dos mais de 60 membros da família. A desunião que surgiu depois da morte dela foi um dos maiores choques da minha vida: descobri que, por trás da fachada de união, havia falsidade e rancor — adultos reunidos para fazer de um velório fofoca e cortar laços em nome de mágoas antigas.
Foi minha avó que me ensinou a perdoar. Ela enterrou um dos filhos por câncer e lidou com aquela dor com uma fé admirável. Lembro dela passando a mão nas minhas costas antes de dormir e até hoje, peço ao Igor para “tirar meus cravinhos” igual minha avó fazia, porque só assim eu realmente caio no sono. Esses toques simples me marcaram.
No mês passado, perdi também a minha madrinha, Maria Antonieta — chamávamos ela de Neca. Vi ela lutando contra o câncer, assim como um dos irmãos, e, num momento terminal, ela me disse: “não me abandona”. Foi a dor mais intensa que eu senti. Numa cama de doença, ela me pediu amor, e eu vi na pele o quanto Storge é urgente: é estar presente em vida.
Minha mãe, por sua vez, mostrou-me outra face do amor. Mulher batalhadora, trabalhava o dia inteiro para que eu não faltasse a nada. Hoje, com mais tempo livre, ela insiste em lidar com problemas bobos meus quando algo me entristece — chegou quase a brigar para me ajudar a resolver um presente para o Igor. Amor indireto, mas sempre presente nas refeições compartilhadas, no cuidado de tornar nosso lar um lugar seguro. Aprendi que afeto não precisa de grandes gestos, mas de consistência.
E então há minha “família escolhida”: a família do meu namorado. A avó dele, ativa e espirituosa; o cunhado, batalhador e o último romântico do mundo; a cunhada, que ergueu um negócio de um mês pro outro — e deu certo. A madrinha dele, com um filho deficiente, que enfrenta tudo com doçura e leveza e todo o resto. Nesse lar, aprendi o que quero reproduzir: lealdade sem fofocas, acolhimento sem julgamento, presença sem cobranças.
Por fim, penso no Pedro Henrique, o menino que eu ajudei a criar e fiz parte da infância, filho da minha madrinha já falecida. Hoje com nove anos, ele cresceu e não se lembrou de mim num reencontro recente — e doeu tanto que eu choro até hoje. Compreendi que, às vezes, o amor de Storge exige coragem para se afastar por paz. Afastar-se também é um ato de amor: amar de longe, sabendo que manter a calma e o respeito é o melhor legado que podemos dar.
Família é onde o afeto insiste em morar
E mesmo com tantos rompimentos, com tantas dores e silêncios, eu posso dizer:
Hoje, quem me ensinou o que é amor e cuidado foi minha avó. Mas quem me mostrou como quero ser, foi a família do meu namorado.
Sim, a família se constrói. A vó do meu namorado. O cunhado, a cunhada, os filhos dela. As primas. A madrinha. Todos eles me deram um lar. Me incluíram. Me acolheram. E me ensinaram que a gente pode ser amado sem ter nascido do mesmo ventre, sem carregar o mesmo sobrenome.
Storge é o amor que cresce em raízes profundas, mas também aquele que floresce na liberdade de escolher quem merece o nosso cuidado. É o colo da avó, o esforço silencioso de uma mãe, a graça de quem nos acolhe sem perguntas, e até o distanciamento de quem amamos por respeito à paz.
Que possamos valorizar cada toque carinhoso, cada mesa posta em conjunto e cada abraço que atravessa gerações. E que saibamos, quando necessário, amar de longe para manter nosso próprio coração em paz.
E você, quais gestos simples marcaram sua infância e ainda tocam seu coração hoje? Existe alguém por quem você perdoa até hoje por amor? Quem faz parte da sua família escolhida?
Na próxima edição, vamos mergulhar em Agape, o amor universal e incondicional que expande nosso abraço ao mundo.